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As lições deixadas pelo Caso Enron - Valor Econômico - p. E4 - 28.06.2006

A recente condenação de Ken Lay e Jeff Skilling, dois importantes executivos da falida Enron, permite que se observem vários pontos de divergência entre o modo como casos de colarinho branco ("white collar crimes") eram tratados no passado e como serão daqui para frente nos Estados Unidos da América.


A primeira mudança verifica-se na conduta dos acusadores públicos, que têm adotado, na investigação criminal, táticas mais agressivas em face dos investigados, antes só utilizadas em procedimentos investigativos atinentes à droga e ao crime organizado. Assim, para embasar a imputação contra dirigentes de companhia, inicia-se com a oitiva de pessoas da empresa, de segundo e terceiro escalão, com o fim de se obter o maior número de delações premiais (acordos de eventual redução de pena em troca de confissão).


Na busca de provas, também são ouvidos familiares de funcionários, com o objetivo de se conseguirem informações sobre os negócios da empresa, movimentação de valores e acréscimo de patrimônio pessoal. A análise da situação tributária de cada um dos executivos serve para pressioná-los, com propostas de cooperação no processo criminal, inclusive.

Exageram-se nos pedidos de prisão cautelar e na exposição pública dos algemados para constranger os investigados a confessarem os crimes, diante de acenos de benefícios na pena e até mesmo de concordância dos promotores públicos com a liberdade provisória.


Enfim, para fragilizar a defesa, os acusadores públicos norte-americanos pressionam auditorias e escritórios de advocacia, especializados em direito privado, a explicarem como concordaram com negócios arriscados para a empresa; desprezaram dados graves, presentes na contabilidade e no balanço; e atestaram a confiabilidade de gestões empresariais duvidosas.


Essa mudança na persecução de crimes econômicos, tão noticiada pela imprensa norte-americana, exige reflexão. Os problemas não podem mais ser examinados somente sob a perspectiva corporativa.


Agora, deve-se olhar a conduta do executivo na empresa, assim como o que ele fez na vida pessoal. Separações judiciais controvertidas, relacionamentos extraconjugais, problemas tributários e negócios particulares com ações da companhia passam a compor um outro cenário de preocupação.


Observe-se, por exemplo, que um dos pontos de fragilidade na gestão de Ken Lay foi o fato de ele ter vendido milhares de ações, ao mesmo tempo, que incentivava seus funcionários a comprá-las, dado o suposto baixo valor de cotação. Nada fácil explicar a incongruência entre o agir individual, no mercado, e o que diz o executivo-chefe a investidores.


Alguns procedimentos no âmbito da empresa não podem mais ser levados como uma simples burocracia. O atendimento pleno às regras internas da companhia - seja quanto às alçadas de competência na administração da empresa, seja quanto à forma de realização dos negócios jurídicos e respectivo cumprimento da lei - passa a ser muito importante para a verificação da ocorrência de crime.

A extrapolação dos limites do poder do cargo apresenta-se como um indício contra o administrador, se não justificada em fato concreto, ou na posterior concordância de quem tinha a legitimidade de, assim, proceder (superior hierárquico, matriz, assembléia geral, dentre outros). Ainda, o descumprimento de normas de direito administrativo pode apontar para a ilicitude da gestão.


Nessa linha de raciocínio, não obstante críticas que se possam fazer às regras da Lei Sarbanes-Oxley, o acatamento dessas significa, sob o ângulo pessoal do executivo, uma proteção na hipótese futura de se lhe questionar a gestão. Pense-se no problema da fidelidade dos números, pois um dos pontos do caso Enron era apresentar ao mercado resultados que, no máximo, poderiam ser expectativas de ganho.


Além disso, o tratamento leniente frente ao comportamento indevido de colegas na administração da empresa pode acarretar uma possível responsabilidade do gestor inerte, que fica com a sombra da aquiescência ao ilícito. Embora não se concorde com ambientes empresariais persecutórios, deve-se sopesar que o "non facere" do gestor pode lhe trazer implicações, ainda que indiretas.


Da mesma forma, os benefícios pessoais dos altos executivos precisam ser compatíveis com a situação econômico-financeira da empresa, porque se tornam de difícil justificação caso a empresa venha a falir. Por isso, também as estratégias tributárias dos administradores nunca podem ser traçadas, com vistas ao interesse individual, porém com risco de contingência para a empresa.

É evidente que não se deve aceitar aquilo que querem os acusadores públicos: transformar a condenação do caso Enron em um paradigma para apavorar os administradores de empresas mundo afora.


No entanto, a par da obviedade, tanto executivos como auditores e advogados não podem fechar os olhos para o abominável mundo novo dos processos judiciais em crime econômico. Daqui para a frente, alguns procedimentos no âmbito da empresa não podem mais ser levados como simples burocracia. Afinal, o descompasso entre condutas, regras internas, pareceres jurídicos e relatórios de auditoria não serão mais tratados como meros equívocos ou ressalvas, mas como potenciais indícios de crime.


No mais, resta-nos acreditar que o sistema jurídico norte-americano, como um todo, ponha de lado esse utilitarismo no processo penal e volte para o campo da ética, onde constranger testemunhas, investigados e acusados não entra no jogo do devido processo legal.

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