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Indefiro, e me julgam honesto - Gazeta Mercantil - p. A-14 - 20.06.2007

As notícias sobre possíveis casos de corrupção no Judiciário apresentam a tendência de generalizar o problema, ao tratarem fatos isolados como algo comum na atividade dos magistrados. De modo até mesmo leviano, repetem-se, aqui e acolá, assertivas no sentido de que muitas decisões judiciais seriam produto de influência, ou de vantagem indevida.


Nessa onda, espalham-se boatos sobre cortes e juízes, aproveitando alguns para justificarem as derrotas jurídicas em pretensas ocorrências estranhas - maneira mais simples de explicar o fracasso das demandas.


Por variados motivos, embora seja patente o absurdo dessa generalização, o Poder Judiciário defende-se mal perante a sociedade brasileira. Não se ouve resposta firme, nem se sente a união entre os julgadores. Há um silêncio constrangedor, na medida em que as insinuações reiteradas acabam sem ser rebatidas, trazendo ao grande público a impressão de alguma verdade.


A ausência de manifestação - de Presidentes de Tribunal e de Ministros, principalmente - contra determinadas maledicências da mídia afeta o comportamento dos julgadores seja na vida social, seja no exercício da profissão, além de aborrecer as famílias dos magistrados e desestimular os estudantes de Direito a ingressarem na carreira.


Neste contexto, há múltiplas faces do problema, valendo limitar o ângulo pelo qual se analisa a questão. Parece que a consequência mais grave desse torpor ocorrerá no âmbito da interpretação e aplicação da lei, pelos próprios julgadores.


O leigo não sabe, mas o juiz de Direito, ao decidir um conflito, não se limita à mera verificação de qual dispositivo legal aplicar ao fato trazido a julgamento. Ao apreciar os autos judiciais, ele reconstrói o quadro fático na específica circunstancialidade para, depois, examinar no todo do ordenamento jurídico o sentido da norma a ser observada.


Nessa segunda tarefa, abre-se a perspectiva axiológica, a qual exibe o julgador inserto na cultura de seu tempo. Surge a ele a oportunidade de interpretar segundo os valores, ainda que não os tenha encontrado positivados em sede constitucional, ou infraconstitucional.


Ao contrário do que se imagina, esse processo decisório permite a criação, o que torna o julgar muita mais do que imposição da lei. Torna o julgar obra apta a colaborar com o desenvolvimento do Direito, ao trazer novas ideias e ao renovar velhas interpretações.


Ora, num clima de caças às bruxas, raro quem vá se expor a contrariar as correntes jurisprudenciais e a inovar em temas de repercussão pública. Em matéria tributária, por exemplo, vê-se reduzida a chance de o juiz reconhecer teses em favor do contribuinte, graças à desconfiança atual sobre as decisões contra os interesses do Estado.


Também, perturba-se o controle jurisdicional sobre a polícia judiciária, cujas arbitrariedades passam a ser aceitas em nome da ansiedade coletiva por punição. E o medo de sofrer críticas leva ao deferimento de pedidos de prisão processual, quando os acusados ostentarem poder econômico, ou representarem figura pública.


O juiz criminal temeroso permite investigações ilegítimas, mediante autorização de interceptações telefônicas sem base concreta, e não tem coragem de pôr fim às prorrogações de mandados dessas medidas excepcionais que se perpetuam em automatismo ilegal.


Tais aspectos trazem a reflexão sobre os prejuízos que cada brasileiro pode padecer com o enxovalhamento do Poder Judiciário. Na solidão do gabinete, antes de se preocupar com a justiça do caso concreto, o juiz agora vai pensar na imagem e na carreira.


Entre a missão que cada magistrado se propõe de decidir com imparcialidade e o pragmatismo de avaliar os riscos de andar contra a corrente, ele tende a optar pelo caminho simples: deixar de reconhecer direitos individuais frente ao Estado, para que não digam que está favorecendo este réu, ou aquela empresa...


Pode-se sintetizar essa conduta numa frase: Indefiro, logo me consideram honesto – lema dos que vivem sob a pressão de serem taxados de ímprobos por preservarem os princípios do Estado de Direito.


Eis aí a esquizofrenia que afeta parcela da magistratura brasileira.


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